Imortalidade de Pitágoras
modifierFamosissímo por todos nós ocidentais, este matemático samuense deveria ser mais lembrado nas escolas por seus dotes espirituais do que por seus dotes intelectuais. Em verdade, o conhecimento matemático era para ele muito mais do que um fim intelectual: era a ponte entre a mente e o espírito. Extremamente religioso neste sentido, legou a todos os pitagóricos um símbolo da harmonia do cosmos e, simultaneamente, um meio de alcançar o equilíbrio interno do espírito humano quando elaborou a teoria da harmonia das esferas. É uma teoria muito mais profunda do que a mera conjectura da consonância das notas que os astros produzem em seus movimentos regulares. Tal sensibilidade, rara nos cientistas e nos filósofos de hoje, fez com que Pitágoras não conseguisse separar os já citados dotes esotéricos dos dotes da inteligência. Assim, secretos, ocultos, curiosos, os pitagóricos veneravam a harmonia e encontravam na música um método de elevação e purificação da alma que só poderia ser atingida através da contemplação intelectual das congruências expressáveis mediante relações numéricas.
Criando uma teologia racional, Pitágoras notava nos símbolos numéricos um meio de atingir-se a Deus, quer ele quem seja. (Galileu deveria ter o mesmo sentimento quando escreveu que os números eram a linguagem com que o criador havia gerado o universo; NEWTON TAMBÉM....) Creio que aos pitagóricos fora dado o direito da não-distinguição da forma, da lei e da matéria; não sei ao certo se tal não-distinguição é um erro, um pecado, mas posso afirmar que suas conseqüências desencadearam toda uma geração que, ALGUM ADJETIVO, via nos números a verdadeira essência das coisas.
Para o velho mundo pagão, a essência das coisas, sabe-mo-nos, não deveria estar mais próxima de outra coisa a não ser da Natureza. Convém que saibamos antes do envolvimento de Pitágoras com esta Natureza, pois é disto que tiraremos nosso entendimento de seu crédito dado à eternidade, verdade com que ele se defrontou imediatamente após ter feito observações naturais. A sucessão contínua dos verões e dos invernos, dos dias e das noites, do sono e do despertar, explicavam-lhe assaz o fenômeno da morte. Pitágoras acreditava na imortalidade da alma e na eternidade da vida; a imortalidade especial da alma humana consistia, em sua opinião, na prolongação da lembrança. Pretendia lembrar-se de suas existências anteriores e achava, de fato, alguma coisa semelhante em suas reminiscências.
Sei muito bem que tais afirmações podem ser colocadas como meras especulações sobre as crenças de Pitágoras; encontro, no entanto, minha defesa em Ovídio, meu poeta soberano. Nas Metamorfoses, um dos mais belos poemas da antiguidade, o latino escreveu o discurso de Pitágoras: "Morava ali um homem, natural de Samos, que tinha fugido de Samos e dos reis, e que, por ódio à tirania, vivia um exílio voluntário." (Met. XV, 60-62.) O discurso alonga-se, além das inúmeras condenações dadas por Pitágoras aos homens que comem carne ou servem animais às mesas (o matemático é considerado o primeiro vegetariano), a um interessante jogo de palavras sobre o tempo e sobre a esperança que se pode ter além-vida, que apóia o pensamento ovidiano de transmutação, de metamorfose, fenômeno natural que dá título a seu célebre poema que acompanhou-me a adolescência. Assim diz Pitágoras, pelas mãos de Ovídio:
- "Ó raça paralisada de estupor pelo terro da morte gélida,
- por que temeis o Estígio, as trevas e os nomes inexistentes,
- matéria para poetas, e os perigos de um mundo imaginário?
- Os corpos, quando a chama os desintegra na pira, ou o tempo
- pela decomposição, mal algum podem sofrer, acreditai-me.
- As almas estão livres da morte e, deixando a primeira morada,
- em nova mansão são acolhidas e lá habitam, vivendo sempre." (Met., XV, 153-159)
Tais palavras surgem de um sensato homem cuja mente estava preparada para a aplicação científica e que foge do fantástico para dizer realidades espirituais; caso contrário não negaria Homero, OUTROS POETAS GREGOS quando diz "matéria para poetas", ou seja, "não para mim". Quanto aos deliberados erros que qualquer representação artística de uma figura famosa pode incorrer *, não vejo qualquer falácia na arte de Ovídio, justamente por ser poeta e, mesmo assim, publicar essas palavras contrárias à todas as poesias de até então, que comumente citavam os deuses mitológicos (Sabemos que ele próprio refere-se às vezes a alguns deuses ora como seres existentes e antropofármicos, ora como meros representantes de seus tradicionais epítetos* e que à sua época imperial romana a mitologia já não era tão aclamada como para os gregos, mas ainda servia como religião.) Pitágoras, concluímos, tinha a mesma formação de pensamento que Ovídio e Ovídio, concluímos com ainda mais certeza, via em Pitágoras uma figura que concordava consigo: assim não seria se o latino utilizasse da crença de um homem cujas palavras não crê, mas que lhe servirá como forma de metalinguagem para a temática principal de transmutação do seu longo e belo poema [não utilizasse o matemático como forma de metalinguagem para a temática principal de transmutação do seu longo e belo poema.] Mas o pensamento de eternidade de meu poeta predileto veremos um pouco mais tarde... Pois, continuando o discurso, vemos que Pitágoras subtrai estas palavras que nos parecem subjetivas e homéricas (mas afirmo que não o são) e vai para a experiência pessoal:
- "Eu próprio, lembro-me bem, fui, à época da guerra de Tróia,
- Euforbo, o filho de Panto, em cujo peito, em tempos idos,
- se cravou em cheio a pesada lança do Atrida mais novo.
- Reconheci o escudo, que então eu trazia na mão esquerda,
- há pouco em Argos, a cidade de Abante, no templo de Juno. (Met., XV, 160-164)
Mas, achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham em dificuldades para explicar a multiplicidade e o vir-a-ser, precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicar a variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os pitagóricos - o ilimitado e o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põe limites à divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer, imperfeito, segundo a concepção grega, a qual via a perfeição na determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, é limitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada coisa - sendo cada coisa número - são o par e o ímpar, o ilimitado e o limitado, o pior e o melhor. Radical oposição esta, que explicaria o vir-a-ser e o múltiplice, que seriam reconduzidos à concordância e à unidade pela fundamental harmonia (matemática), que governa e deve governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro.
Por isso, parece-me que quem dará uma explicação mais matemática (no que diz respeito à lógica e à objetividade e à praticidade) da eternidade, não será o homem de Samos, paradoxalmente um matemático, e sim outro, nascido no mesmo ano em que ele, o Parmênides de Elea, cujo pensamento veremos no próximo verbete...
Fontes
modifierhttp://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/musica/pitagoras.htm
http://www.joselaerciodoegito.com.br/site_pitagoras_asp.htm